O princípio da autonomia da vontade no divórcio após a morte de um cônjuge

Ana Priscila
Ana Priscila
Tempo de Leitura 7 min

No contexto do direito nacional, às vezes, algumas premissas são consideradas inabaláveis, mas, mesmo quando parecem absolutas, há momentos em que é necessário reavaliá-las e analisá-las sob uma nova perspectiva.

Nesse sentido, à luz de decisões proferidas pelos Tribunais, e mais recentemente pelo Superior Tribunal de Justiça, surgiu uma preocupação com o possível prejuízo causado às partes em casos de divórcio quando um dos cônjuges falece durante o processo. Isso ocorre porque a interpretação estrita da perda do objeto da ação, quando um dos cônjuges morre enquanto o divórcio está em andamento, pode violar o princípio da autonomia da vontade na dissolução do casamento.

O artigo 1.571 do Código Civil de 2002 estabelece que a sociedade conjugal pode terminar por diferentes motivos, incluindo a morte de um dos cônjuges, a nulidade ou anulação do casamento, a separação judicial e o divórcio.

No âmbito do direito processual civil, tanto a doutrina quanto a jurisprudência geralmente consideram que a morte de um dos cônjuges durante um processo de divórcio resulta automaticamente na perda do objeto da ação, na extinção imediata do casamento e na extinção do processo sem resolução do mérito, com base no artigo 485, inciso IV do Código de Processo Civil. Mesmo que uma sentença tenha sido proferida antes de ser transitada em julgado, o cônjuge sobrevivente adquire o estado civil de viúvo, e o casamento é considerado dissolvido devido à morte.

No entanto, sob uma perspectiva do direito material, o Código Civil não estabelece uma hierarquia entre a morte e o divórcio como causas da dissolução do casamento, de modo que a morte não deveria automaticamente anular o processo de divórcio em andamento.

Considerando o caráter potestativo do instituto do divórcio, que não admite contestação ou oposição e é concedido mediante o simples pedido das partes, o pedido de divórcio em si não deveria encontrar obstáculos. Isso é evidenciado pelos recentes entendimentos que concedem a tutela de evidência, permitindo que o divórcio seja julgado antecipadamente.

Por meio do instituto do divórcio post mortem, é possível decretar o divórcio das partes mesmo após a morte de um dos cônjuges, respeitando o princípio da autonomia da vontade.

O princípio da autonomia da vontade é um dos pilares do Código Civil de 2002, baseado na ideia de que a vontade das partes rege os negócios jurídicos e os contratos. No contexto do casamento, esse princípio se manifesta na liberdade de contratar e na liberdade contratual, permitindo que as partes escolham livremente com quem se casar e determinem o conteúdo do contrato matrimonial.

Em termos contratuais, não é possível discutir contratos sem considerar esse princípio, que abrange a liberdade de escolha e a liberdade de definir os termos do contrato.

Dessa forma, levando em consideração o princípio da autonomia da vontade, da dignidade da pessoa humana e da proporcionalidade, o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais julgou um caso em 2018 que trouxe à tona a questão do divórcio post mortem.

Nesse caso, os herdeiros buscavam cumprir a vontade do pai de se divorciar, uma vontade que não foi realizada devido à demora e à inércia do judiciário em conceder a tutela antecipada, que teria decretado imediatamente os efeitos do divórcio.

O Tribunal de Justiça de Minas Gerais entendeu que a morte do cônjuge durante o processo de divórcio não resultaria na perda do objeto da ação, uma vez que a manifestação de vontade das partes de se divorciarem era evidente. O processo não havia sido concluído devido à morosidade do judiciário, e a vontade do cônjuge falecido era clara.

Portanto, o tribunal reconheceu a possibilidade de decretar o divórcio post mortem, mesmo após a morte de um dos cônjuges, em conformidade com o princípio da autonomia da vontade.

É importante notar que, embora o divórcio seja um direito exclusivo dos cônjuges, a sucessão processual dos herdeiros pode ser admitida em casos em que haja interesse e manifestação de vontade clara em favor do divórcio. A morte do cônjuge durante o processo não deve resultar automaticamente na perda do objeto da ação, desde que os herdeiros sucedam ao interesse do falecido.

Assim, a decisão do tribunal estabeleceu três requisitos para a concessão do divórcio post mortem: a) a demonstração do interesse dos herdeiros na sucessão processual; b) o exercício pessoal do direito pelas partes; e c) a manifestação clara da vontade do falecido de se divorciar em vida.

É importante ressaltar que esses requisitos devem ser analisados em conjunto, e a morte durante o processo não deve ser vista como uma razão automática para a perda do objeto da ação. A interpretação flexível dessas situações pode garantir que a vontade das partes seja respeitada, mesmo quando um dos cônjuges falece antes da conclusão do processo de divórcio.

Dessa forma, a concessão do divórcio post mortem não só respeita o princípio da autonomia da vontade, mas também oferece uma solução justa em casos em que a morte não deveria ser um obstáculo à dissolução do casamento.

Por fim, é importante observar que, para implementar o divórcio post mortem, podem ser necessários dois procedimentos separados: o divórcio, que é tratado pelo juízo de família, e o inventário, que é tratado pelo juízo sucessório. Isso ocorre porque, de acordo com o Princípio de Saisine, os bens do falecido são transmitidos aos herdeiros imediatamente após a morte, levando em consideração o efeito retroativo da sentença que homologa o divórcio concedido após a morte.

Fonte: Daniela Rosa Pereira Motta Fedato | Advogada, especialista em Direito de Família, Direito das Sucessões e Planejamento Sucessório, no Daniela Motta Advocacia. Associada ao Instituto de Estudos Avançados em Direito e membro do Núcleo de Direito de Família e Sucessões.

Compartilhe este artigo
Deixe seu comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *